Texto publicado no livro: A História através das Mídias
Por Marco Antônio Collares
Introdução
O presente artigo vincula-se aos campos da história e dos estudos de cultura visual, pensando-se aqui na relação estreita existente entre a imagem icônica de um personagem oriundo da literatura e presente em diversas mídias visuais contemporâneas e a forma como esse personagem foi imaginado por produtores culturais e visualizado em contextos históricos distintos.
Ao estabelecermos vínculos intrínsecos entre a historicização de uma imagem, ou melhor, de múltiplas imagens sobre o personagem Conan e o campo de estudos da cultura visual, estamos assumindo um olhar teórico-conceitual amparado pela ideia de que as imagens são socialmente construídas, ao mesmo tempo em que agenciam o social.
Seguimos, portanto os apontamentos de Raymond Willian Mitchell (2014) no que concerne ao campo multidisciplinar da cultura visual, não sendo este somente um modo de pensar o social pelo viés da cultura em torno do estudo de certas imagens específicas - como se as imagens fossem meras representações do mundo social - mas sim dentro da ideia de construção visual do social, demarcando-se as diferentes experiências visuais ao longo do tempo (KNAUSS, 2006. p. 108-110). Empreendimento esse que expressa à relação intrínseca entre este campo de estudos com a historicização de múltiplas imagens, no caso aqui, de um personagem oriundo da ficção literária.
Estamos tratando de um personagem específico criado na década de 1930: Conan, o Bárbaro, um personagem concebido pelo texano Robert Ervin Howard para a literatura, mas que também se tornou uma imagem de capa de revistas de contos pulps dos anos da Grande Depressão. A imagem concebida por ilustradores de capas das revistas em que Conan foi publicado e veiculando pela primeira vez foi aos poucos se transformando até o personagem chegar a outras mídias, agora visuais, tais como as histórias em quadrinhos, a partir dos anos 1970 e o cinema hollywoodiano, sendo a primeira produção cinematográfica de 1982.
Para muitos espectadores do primeiro filme do bárbaro, intitulado, “Conan, The Barbarian” interpretado pelo astro do fisiculturismo, Arnold Schwarzeeneger, Conan seria a expressão da força bruta, da violência e da masculinidade belicista a enfrentar criaturas mitológicas e sobrenaturais para salvar lindas mulheres do perigo, sempre pronto para dilacerar seus inimigos com selvageria e sanguinolência, fazendo parte do subgênero literário conhecido como Sword and Sorcery (CERASINI e HOFFMAN, 1987).
Ao efetuarmos aqui uma de historicização da imagem do personagem em mídias diversas e contextos históricos específicos, percebemos que essa imagem um tanto “senso comum” do bárbaro vincula-se a alguns tipos de veiculações midiáticas bastante pontuais: em primeiro lugar, as ilustrações de capa de republicações dos contos originais, principalmente aquelas dos anos 1960, sob a pena do genial ilustrador Frank Frazetta; em segundo, a imagem concebida nas histórias em quadrinhos dos anos 1970 em diante; por fim, a imagem veiculada no cinema hollywoodiano, o que diferencia o personagem do modo como era tratado nos contos e nas capas das revistas pulps dos anos 1930.
Existem aspectos de continuidades entre as primeiras ilustrações e a imagem do personagem que se consolidou na cultura popular, sem dúvida, bem como toda uma gama de imagens de Conan em mídias específicas, tais como o RPG (Rolling Player Games) ou mesmo nos games virtuais. Ao longo deste artigo não serão tratadas tais mídias devido a uma série de situações que nos escapam, seja em função da necessidade de leituras sobre seus suportes, seja devido à necessidade de um arcabouço teórico e metodológico mais amplo.
Por ora, apenas reiteramos que esboçamos aqui alguns apontamentos para uma historicização de imagens de Conan em diferentes contextos e mídias, iniciando tais apontamentos nos anos 1930, quando os contos do bárbaro foram publicados pela primeira vez em revistas com algumas lustrações de capas, passando por republicações de livros de contos posteriores, igualmente munidos de ilustrações de capas, até as histórias em quadrinhos dos anos 1970/1980 e o famoso filme de 1982.
A imagem de Conan na Weird Tales dos anos 1930
O personagem Conan foi publicado na revista pulp, Weird Tales (Contos Estranhos) nos anos 1930. A revista normalmente publicava contos de detetives, de fantasia, terror, ocultismo, ficção científica, western e/ou suspense, possuindo um padrão de capa bastante característico se consideramos os tipos de narrativas em seu interior ou mesmo seu publico leitor, normalmente formado por homens jovens (KNOWLES, 2008, p. 104).
Narrativas com temas de ocultismo temperado com forte conteúdo sexual caracterizavam a maior parte dos contos da Weird Tales desde sua origem em março de 1923, possuindo escritores do porte de Robert E. Howard, famoso pelo subgênero literário conhecido como Sword and Sorcery, além de H.P Lovecraft, Robert Bloch e Clark Ashton Smith, todos eles com seus contos contra culturais sobre seitas arcanas secretas, mistérios míticos ou mesmo sobre criaturas demoníacas hibernando em lugares ermos da Terra, oriundas de mundos interiores ou extraterrestres (KNOWLES, 2008, p. 105).
A referida revista não era única no mercado estadunidense da época, concorrendo com diversas outras publicações pulps do porte de Amazing, Starling Stories, Thrilling Wonder Stories, Argosy, Battle Stories, Spicy Detetives Stories, Astouding Science Fiction, depois Ghost Stories, Tales of Magic and Mistery, Strange Tales of Mistery and Terror, entre outras, todas contendo contos enviados por autores freelances ou mesmo fãs de narrativas regadas a um pseudo-realismo mesclado a temas de mistério, ocultismo, suspense, terror, ficção científica e fantasia (SAMMON, 2007, p. 8).
Os contos pulps, ainda que considerados sinônimos de literatura de baixa qualidade entre os críticos literários da época tiveram relativo sucesso no entre guerras e no pós Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos de 1920-1950, principalmente diante de um público leitor masculino sedento por escapismo fantástico em meio à onda de violência urbana instigada pelo gangsterismo, pelo sentimento de crise da época da Grande Depressão, bem como pelos ultranacionalismos e totalitarismos de toda a espécie (KNOWLES, 2008, p. 98-99; MAGNOLI e BARBOSA, 2001, p. 143-198).
Esses contos ora concorreram com as primeiras tiras jornalísticas dos super-heróis, ora influenciaram as narrativas desses personagens fantásticos nas chamadas comics book, em seus momentos iniciais de veiculação e consolidação, fora o peso que tiveram na carreira de nomes da literatura sie-fie do porte de Lester Dent, Isaac Asimov e Ray Bradbury (SAMMON, 2007, p. 9 - 10). “A Weird Tales em particular era caracterizada por suas capas sensuais ou surrealistas, especialmente aquelas produzidas pela “dona de casa” de Chicago, Margaret Brundage” (KNOWLES, 2008, p. 105).
As capas da Weird Tales, principalmente as com ilustrações de Brundage chamavam a atenção dos leitores e críticos, sendo normalmente coloridas, padronizadas e com brochuras coladas de papelão, contendo temas apelativos de protagonistas masculinos ao lado de “mulheres sensuais”, normalmente em perigo frente a forças sobrenaturais, extraterrestres ou mesmo diante de monstros do imaginário mítico da literatura oitocentista (WEINBERG, 1977). Segue abaixo um exemplo:
Em primeiro plano normalmente era representado um herói masculino enfrentando alguma criatura do mundo sobrenatural para salvar alguma mulher em perigo. Isso quando a mulher não estava sozinha na capa, amarrada a espera de algum ritual arcano com traços de sadismo masculino. Se as publicações eram simples e de baixa qualidade gráfica, os editores esperavam cativar os leitores com capas impactantes e surreais, munidas de terror e suspense do oculto (SAMMON, 2007, p. 11).
Destaque para dois fatos interessantes referentes às ilustrações de Brundage na Weird Tales. O primeiro vincula-se as críticas que seus desenhos sofreram de leitores ou mesmo de integrantes dos movimentos feministas da época, como se as imagens representassem as mulheres como meros objetos da degustação voyeur masculina[4]. O segundo relaciona-se as ações do prefeito de New York da época, Fiorello La Guardia, na tentativa de impedir novas publicações das imagens da ilustradora por puro moralismo diletante, condicionando a um desfile de ilustrações posteriores de cunho ocultista ou mesmo de fantasia regada a violência extremada (WEIBENRG, 1977, p. 56-57).
Para nossos propósitos é imprescindível tratarmos especificamente das capas que retrataram Conan, levando-nos agora a uma historicização da imagem do personagem desde os anos 1930. O primeiro conto literário do cimério foi publicado em dezembro de 1932, denominando-se, “The Phoenix on The Sword” e foi apenas mais um dos contos daquela edição, não ganhando sequer uma ilustração de capa, visto que o editor da revista, Farnsworth Wright, apesar de ter visto “pontos de verdadeira excelência no conto”, não o considerava suficientemente bom para destacá-lo (LOUINET, 2006, p. 15). A primeira ilustração de um conto de Conan data somente de junho de 1933, com o conto intitulado, “Black Colossus”, sendo que Conan sequer é mostrado na capa. Vejamos:
Chama a atenção na imagem acima o tema tradicional das capas da Weird Tales e especificamente, das ilustrações de Brundage. Trata-se da imagem de uma jovem nua aos pés da estátua de um homem barbado que não difere muito de qualquer estátua em estilo clássico de um deus pagão ou herói grego do Mundo Antigo. O mundo meta-histórico de fantasia criado por Howard chamava-se Era Hiboriana e mesclava aspectos culturais, políticos, mitológicos e sociais das civilizações e sociedades dos períodos históricos que convencionamos denominar de Antiguidade e Idade Média (SPRAGUE DE CAMP, 1980, LORD, 1976), ainda que a ilustração de capa em si não tivesse vinculação direta com o texto publicado no interior da revista.
A primeira vez que Conan foi retratado preponderantemente na capa da Weird Tales merece destaque, principalmente porque a ilustração muito difere da imagem que o público em geral, deveras influenciado pela produção cinematográfica de 1982, estrelada pelo fisiculturista Schwarzeeneger possui do personagem. Trata-se do conto, “Queen of the Black Coast”, publicado em agosto de 1934, sendo um dos contos literários howardianos mais cultuados e republicados de todos os tempos devido ao par romântico entre o bárbaro e a capitã pirata Bêlit, abraçada a Conan na ilustração de Brundage que se segue.
A narrativa no interior da revista trata inicialmente do encontro de Conan com Bêlit no litoral do reino fictício de Argos e de como o bárbaro passou a se aventurar em seu navio por quatro anos. Chama nossa atenção a imagem de Conan, representado como um homem mais velho, segurando nos braços uma indefesa Bêlit diante de uma criatura humanoide munida de garras e asas. Novamente o tema tradicional do protagonista protegendo uma linda mulher em perigo com vestes sensuais está presente e novamente a capa não se relaciona diretamente com a narrativa em questão. Isso se deve pelo fato desse tipo de capas serem tradicionais na literatura pulp, meio que um padrão artístico e estético, além de serem encomendadas sem que o ilustrador tivesse conhecimento do teor do conto em seus detalhes (WEINBERG, 1977).
No supracitado conto, Conan é obrigado a fugir de autoridades argorianas, aportando em um navio ancorado de um comerciante qualquer, logo tomando parte entre seus tripulantes. Não muito tempo depois, o navio é atacado pelos piratas de Bêlit e Conan, após mostrar habilidades em espada e força quase sobrenatural no enfrentamento dos mesmos, torna-se mesmo um tripulante do navio comandado pela mulher, tema, aliás, bastante usual em narrativas posteriores do personagem em diversas mídias (HERRON, 2004).
Apesar do relacionamento de Conan e Bêlit possuir uma natureza amorosa e afetuosa ao longo da maior parte do conto, existe certo teor de sadismo da parte dele em relação a ela (LOUINET, 2006, p. 283), ainda que Bêlit seja tomada por Howard como uma mulher forte, selvagem, imponente e altiva. Podemos encontrar um exemplo de como Bêlit é descrita no conto através das palavras do timoneiro do navio mercante que Conan encontrou ao início da aventura. Vejamos:
A mulher (Bêlit) é a mais selvagem e demoníaca que já pisou nesse mundo. A menos que eu tenha lido errado os sinais, foram os carniceiros dela que destruíram aquela vila na baía. Espero vê-la um dia enforcada num mastro bem alto! Chamam-na de Rainha da Costa Negra. É uma mulher shemita que lidera bandoleiros negros. Eles atacam e saqueiam os barcos que navegam por aqui, e já mandaram muitos navegantes e comerciantes para o fundo do mar (HOWARD apud LOUINET, 2006, p. 126 – 127).
A descrição de Bêlit é, portanto de uma mulher forte e selvagem, uma saqueadora que vivia pelas armas, tal como o próprio Conan. Chama nossa atenção, porém o fato de a capa da edição da Weird Tales desvelar a imagem de uma mulher extremamente frágil nos braços do bárbaro, talvez devido à presença do sobrenatural frente aos dois personagens, igualmente tratado no conto, talvez, tal como mencionado mais acima, como uma mera ilustração usual e tradicional de Brundage e da Weird Tales.
Mesmo que as características das capas da revista ajudem a explicar a ilustração da frágil Bêlit nos braços de Conan, não é descabido pensar aqui nas considerações de Judith Butler (2003, p. 27-28) e sua ênfase no discurso de construção de gênero ser concebido a partir de matizes sociais e culturais definidos por pares binários entre homem/forte/racional e mulher/frágil/sentimental. Em outras palavras, na caracterização do ser masculino, pensando-se exclusivamente na imagem, Conan está em posição de protetor da mulher, conferindo a ideia de que o ser feminino deve ser protegido, caracterizando aqui não somente um padrão visual de capa, mas igualmente um discurso cultural sobre gênero.
Uma imagem que, em nossa opinião, agencia tal discurso de gênero. Conan igualmente aparece na imagem em uma posição defensiva, com uma espécie de adaga na mão direita, colocado como protetor de Bêlit, ainda que sua imagem seja muito distante da imagem selvagem de belicosidade das representações posteriores, seja nos quadrinhos e no cinema.
No máximo, o estado de barbárie de Conan, tão exaltado nos contos literários howardianos, transpareça pelos trajes que ele se utiliza na imagem, um estereótipo clássico que aproxima o personagem de Tarzan, de Edgar Roce Borroughs, uma das muitas influências literárias do escritor texano (TEGÃO, 2014). Na capa da Weird Tales, Conan parece ser mais a imagem do “bom selvagem” do iluminista Jean Jacques Rousseau do que do bárbaro musculoso e violento das ilustrações mais famosas dos quadrinhos ou de outras mídias visuais mais recentes (TEGÃO, 2014, p. 149-150).
Pela descrição do próprio criador, Conan muito difere do homem representado nesta capa da Weird Tales, sendo normalmente descrito como, “um bárbaro selvagem musculoso, com a pele bronzeada, os olhos azuis e todo o corpo e rosto marcado por cicatrizes” (HOWARD apud TEGÃO, 2014, p. 344). Além disso, Howard fez questão de enfatizar que o estágio de barbárie em seus contos muito diferia do teor dado por Rousseau em sua concepção filosófica de “bom selvagem”, como pode ser expresso pela passagem de uma carta do autor texano logo abaixo:
Não tenho a visão idílica do bárbaro – até onde pude aprender, trata-se de uma condição sombria, sangrenta, feroz e impiedosa. Não tenho paciência para a representação de um bárbaro de qualquer raça como uma criança cheia de dignidade, feita á imagem de Deus na natureza, dotada de uma estranha sabedoria e falando frases sonoras e bem enunciadas (HOWARD apud LOUINET, 2006, p. 21 e TEGÃO, 2014, p. 157).
Não é descabido pensar na ideia tradicional de uma humanidade desvelada na imagem da Weird Tales, visto que em Conan transparece um ar de impotência e mortalidade ante uma força monstruosa do mundo sobrenatural. Existe na imagem um padrão de suspense que é típico das capas pulps, um padrão que coloca Conan e sua aparentemente frágil companheira como meras caças de alguma criatura dos reinos inferiores, impactando o leitor pela constante presença do tema de sobrenatural nestes tipos contos.
Apesar da barbárie em Howard muito diferir da visão de Rousseau, Conan é tomado na imagem da revista como um “bom selvagem” masculino e protetor de uma inocente e até convencional e frágil mulher, Bêlit (enquanto um arquétipo do gênero feminino), sem o teor belicista que o caracteriza nas representações posteriores, evidenciando uma imagem bastante distinta da descrição de sua figura por Howard, porém não menos interessante dos pontos de vista histórico e cultural.
[continua]
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