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Foto do escritorFórum Conan

Bran Mak Morn: Guerreiro da Justiça Social

Publicado originalmente em Black Gate: Adventures in Fantasy Literature


Por Jason Ray Carney Tradução e introdução Marco Antônio Collares

O rei picto Bran Mak Morn.

SONHANDO SER BRAN MAK MORN


Um dos mais renomados pesquisadores do mundo sobre literatura pulp, vida e obra de Robert Ervin Howard e de H. P. Lovecraft, Jason Carney, veiculou esse texto que ora apresentamos no blog. Tal texto foi publicado em um site de literatura de fora, o Black Gate. De imediato eu li e achei o tema deveras interessante, muito por vincular a temática de um conto famoso de Howard com problemáticas presentes em nossos dias. Pedi a Carney então para traduzir o texto e publicar aqui no blog do Fórum Conan, o Bárbaro e ele, de imediato, aceitou.


Tive alguns motivos principais para essa tradução e publicação aqui. Em primeiro lugar, pelo fato de gostar muito do personagem, Bran Mak Morn e de considerar seus ciclos, mais especificamente o conto, “Vermes da Terra” um dos grandes momentos da literatura pulp e da escrita howardiana.


Em segundo lugar, porque Bran será publicado no Brasil pela editora Pipoca& Nanquim, e pode ser que o ano de 2021, em se tratando de Howard, seja o ano de Bran Mak Morn em nossas terras. Além disso, achei pertinente veicular tal ensaio porque muitos fãs de Conan consideram, sem qualquer base para tal, que Howard não tinha nada a ver com questões sociais e políticas de sua época. Um engano comum e até sem sentido.


Cabe ao leitor, entretanto, entender o ponto de vista analisado pelo estudioso e tentar compreender que Howard era um escritor visceral e ele, ao contrário do que se pensa muitas vezes, não concebia a fantasia de forma alienada de sua realidade e dos temas mais polêmicos de seu contexto histórico. Em sua ampla correspondência, Howard tratou muito sobre temas variados, de história a literatura, de geopolítica a filosofia e a visão pessoal que tinha do oeste de seu país, do Texas, dos EUA como um todo, da Europa, até mesmo de regimes do porte de fascismo, socialismo soviético e nazismo.

Robert Howard era um sujeito sem meias palavras e também tinha como um dos seus pontos principais o da oposição entre civilização e barbárie, muitas vezes até tecendo narrativas com um forte teor fantasioso, mas com doses bastante viscerais de elementos de sua vida, da história de seu país, utilizando-se de alegorias entre os povos descritos em suas narrativas com aqueles de seu contexto social e histórico. Isso sem falar no forte teor racialista, presente em várias narrativas howardianas, algo que Jason Carney explica a contento nas linhas que se seguem.

Segue abaixo então a tradução que fiz desse breve ensaio. Esclareço que as relações com o mundo atual fizeram total sentido e também lembro a todos que não sou da área da tradução. Aproveito, portanto para pedir desculpas pelos prováveis equívocos de minha parte no processo em si. Caso o leitor tenha dúvidas e queira ler o texto original, coloco o link do respectivo site onde o texto foi publicado.


Bran Mak Morn: guerreiro da justiça social.


"Worms of the Earth" foi publicado em Weird Tales em novembro de 1932 e foi descrito no índice da revista como "um conto sombrio e trêmulo dos dias em que as legiões romanas governavam na Grã-Bretanha - uma história poderosa de um horror horrível nas entranhas da terra”. O conto em si apresenta Bran Mak Morn, o Rei dos pictos, um dos personagens bárbaros de Howard. Um conto quase faustiano, em uma trama que dramatiza a maior transgressão de Bran Mak Morn, quando ele tece um pacto sombrio com uma força diabólica para vingar sua raça moribunda e brutalizada: os pictos.

Muitos consideram “Worms of the Earth” uma das obras-primas de Howard, verdadeiramente assombrosa e enigmática, seu impacto perdurando por muito tempo depois de sua leitura, como se fosse um cheiro de tabaco estagnado ou um bater de couro de asas sombrias. A história também é notável por incluir alusões aos mitos de H.P. Lovecraft, especificamente o antigo deus mesopotâmico de nome, “Dagon”, além da cidade submersa de “R'lyeh”, lar do sonhador Cthulhu. Sem dúvida, os temas da degeneração racial e o poder violento do tempo geológico estão impregnados na lendária correspondência de Howard dos anos 1930 com Lovecraft.

Apesar das credenciais pulps de Howard, o jovem escritor demonstra ambição intelectual nesta narrativa. Os leitores são apresentados a uma estrutura histórica filosoficamente ancorada na oposição entre "Roma" e os "Pictos", ou seja, entre "civilização" e "barbárie". Não se engane, no entanto: filosofia à parte, esta é uma trama de fantasia, um conto de “espada e feitiçaria” delicadamente pintado com uma fina camada de história.

Os pictos de Howard não são os pictos históricos e os romanos de Howard não são os romanos históricos. Sem dúvida que ambas as “tribos” são irreais, ficcionalizadas nesta narrativa e de forma tendenciosa: os romanos são representados como opressores irredimíveis, enquanto que os pictos são representados como as vítimas brutalmente oprimidas dos mesmos. Distorções artísticas e estratégicas permitem que Howard coloque em foco seu tema candente: o ódio de uma raça oprimida por seus opressores brutais e as más consequências desse ódio.

Apesar da natureza fantástica da narrativa, ela se relaciona com a opressão real, com o tema real de opressores e oprimidos. O racismo real prevalecia no início dos anos 1930 no Texas rural de Howard, uma fronteira racialmente mista, onde os idosos e os descendentes de colonos e primeiras tribos deslocadas lembravam (e até testemunharam) as batalhas sangrentas do passado, a guerra civil, o banditismo e a rapina que caracterizaram o que foi mitificado como "o oeste selvagem". Na verdade, esse compromisso sério com o racismo real pode ser percebido ao contextualizar as linhas de “Vermes da Terra” com a correspondência de Howard. Em uma carta de dezembro de 1930 para Lovecraft, Howard associa os Estados Unidos a Roma:

O caso de Roma e da América são curiosamente paralelos [...]. Quando os bárbaros finalmente invadiram o império, encontraram um vulto pesado e pesado, sem identidade ou união, pronto para tombar ao primeiro empurrão vigoroso.

Nesta respectiva carta, Howard interpreta a destruição de Roma como uma bênção acidental que revigorou a Europa. A seguir, ele continua:


Felizmente, as tribos que finalmente pisotearam as linhas em ruínas eram de uma raça jovem e vigorosa, capaz de reconstruir o que destruíram.


É aqui que a analogia americana e romana de Howard se torna matizada: ao contrário de Roma, que Howard argumenta que foi energizada pelo influxo de uma "corrida vigorosa", os Estados Unidos, afirma ele, estariam condenados a longo prazo:


Onde, em todo o mundo, há uma raça intocada e resistente de bárbaros de sangue puro para tomar as rédeas do mundo quando os povos mais velhos se deteriorarem?


Dito de outra forma, Howard pergunta quem conquistará a decadente América e revigorará o mundo? Como resposta, Howard mesmo lança uma tribo improvável: os russos soviéticos, ele especula, serão a "tribo ariana" conquistadora dos Estados Unidos. Mas ele acrescenta uma advertência: “Há muito sangue mongol nas veias da Rússia para que eu considere essa nação como qualquer coisa, exceto alienígena”.


"Raça." "Tribo." "De sangue puro." “Ariano”. Todos esses termos indicam que a teoria histórica de opressor e de oprimido de Howard estava ligada ao racialismo, tão perturbador e pseudocientífico que prevalecia no período “entre guerras”, permeando seu famoso ensaio sobre conflito racial imaginário, "The Hyborian Age". Hoje, em sua maior parte, essa pseudociência racista recuou para a gruta sem luz da dark web da “Supremacia Branca”, um lugar onde covardes comprometidos intelectualmente com ela murmuram sobre "realismo racial", níveis de poder, fantasiando sobre sua superioridade e cedendo à razão às teorias da conspiração.

Os bárbaros pictos foram um adversário difícil para os romanos.

Ao contrário de hoje, porém, essas teorias eugênicas foram predominantes no período do “entre guerras”, disseminadas ao público por obras com críticas favoráveis, tais como “The Rising Tide of Color Against White World Supremacy”, de Lothrop Stollard, um livro que influenciou políticas do porte da Emergency Quota Act, de 1921 e a Lei de Imigração, de 1924.


Na mesma carta a Lovecraft, de dezembro de 1930, Howard se valeu do racialismo para saturar sua teoria da história, do opressor e do oprimido, em uma realpolitik distorcida baseada na raça. Economia e cultura à parte, o motor da mudança histórica descrita nesta carta seria o conflito violento entre raças biológicas que buscam o domínio. Essas ideias perturbadoras são apresentadas posteriormente em "Vermes da Terra".


A narrativa em questão explora as tramas vingativas de Bran Mak Morn, o rei dos pictos. Os pictos são, nos ciclos e nesse conto, uma raça brutalizada e desumanizada pelos romanos (ou seja, alegorizados como americanos). A história começa com o governador romano, Titus Sulla, declarando: “Golpeie os pregos, soldados, e deixe nossos convidados verem a realidade de nossa boa justiça romana”. Um picto é crucificado publicamente diante de uma audiência para demonstrar o poder e a superioridade de Roma. Bran Mak Morn ferve em silêncio enquanto seu colega picto é injustamente assassinado, em um espetáculo terrível. Ele ferve silenciosamente de raiva, mas eventualmente sua raiva irrompe neste monólogo:


Deuses Negros de R'lyeh, mesmo vocês eu invocaria para a ruína e a destruição daqueles açougueiros! Eu juro pelos Inomináveis, os homens morrerão uivando por esse feito, e Roma clamará como uma mulher no escuro que pisa uma víbora!


Bran Mak Morn segue em frente com sua ameaça, e a espada e a feitiçaria decola: ele faz um pacto sombrio com uma bruxa pela localização secreta de um artefato do mal, enterrado em uma gruta escura. Ele então investiga a escuridão da gruta, rouba o artefato maligno e então usa o artefato como refém para forçar a aliança com uma raça desumanizada de monstros pseudo reptilianos que vivem no subsolo.

Página da HQ Vermes da Terra.

O plano de Bran funciona: a raça monstruosa destrói os romanos, captura seu líder, Titus Sulla, e entrega o romano ao ansioso rei picto vingador. É aqui que a trama dá uma guinada enigmática: a mente de Titus Sulla foi destruída por seu encontro com a raça desumanizada e, por pena - não por vingança – Bran decide decapitar Sulla. Aos poucos, o rei picto é dominado por uma sensação de contaminação. “Existem formas muito ruins de usar isso”, afirma ele.


“Vermes da Terra” é um enigma. Tal como Howard, o conto é considerado cada vez mais pelos comentaristas como uma espécie de para-raios em razão de suas contradições cativantes, sua alegorização de teorias pseudocientíficas do “entre guerras”, seu conteúdo abertamente racista e sua relevância para as tensões sociais nos Estados Unidos de hoje.


O acadêmico Mark Finn faz uma observação perspicaz, explicando o potencial único da narrativa para a interpretação: “Bran não oferece comentários sobre sua solução irracional”. Assim, os críticos são compelidos a responder. A história termina em “aporia”, em uma tensão insolúvel, e sua indecisão nascida tem encantado os fãs de Howard ao longo dos anos.


Ao comentar sobre este conto, Patrice Louinet sugere que Bran é uma espécie de stand Howardiano. Em seu “The Robert E. Howard Guide” Louinet escreve: “Se alguém tivesse que decidir qual personagem era o mais próximo de Howard entre suas muitas criações, não o faria que fosse Conan ou Solomon Kane, mas Bran Mak Morn, cuja derrota final é uma certeza, até para ele mesmo”. Louinet cita uma carta de janeiro de 1932 para Lovecraft, onde Howard expressa sua afinidade com os pictos:

Meu interesse por esse estranho povo neolítico era tão intenso que não me contentava com minha aparência nórdica e, se tivesse me tornado o tipo de homem que na infância desejava ser, teria sido baixo, estoque, com grossos membros nodosos, olhos negros redondos, testa baixa e recuada, queixo grosso e cabelo preto reto e áspero.


Colocado de outra forma o comentário de Louinet. Ele argumenta que Howard se identificou artisticamente como um outro tipo racial, um subalterno “não-nórdico”, marcado pela diferença racial. No contexto americano em que Howard situa seus romanos fictícios, ele repudia sua "identidade americana/romana" e se identifica com os oprimidos, os "bárbaros" não romanos brutalizados pela América/Roma, ou seja, os indígenas americanos e ex escravos africanos transformados em Imagens. Se os pictos alegorizam indígenas americanos e ex-escravos africanos, então é justo dizer que Bran Mak Morn alegoriza o que os comentaristas do direito alternativo chamam de “guerreiro da justiça social”, uma pessoa preocupada com a opressão sistêmica do subalterno?


Mark Finn, em sua biografia, “Blood and Thunder: The Life and Art of Robert E. Howard” observa "Worms of the Earth" como a narrativa em que Howard foi capaz de “delinear a mudança exata no destino de seus pictos”, especificamente elucidando a natureza de sua derrota. Pode-se especular que, para Finn, o ponto crucial do conto é o declínio racial e a dissolução: vista do amplo ângulo da obra de Howard, esta história é notável pela forma como conclui a história dos pictos derrotados, mesmo que eles consigam consumar sua vingança contra os opressores.


Mesmo assim, alguns comentaristas evitam o conteúdo racial de “Worms of the Earth” completamente. Por exemplo, em “Robert E. Howard: A Closer Look”, os escritores Charles Hoffman e Marc Cerasini interpretam a história como uma alegoria do terrorismo racialmente neutro:


De uma perspectiva moderna, ilustra os males do terrorismo. Bran deseja efetuar mudanças sociais e vingar a injustiça social, mas vai além de todos os limites do comportamento humano aceitável nessas atividades.


Outros comentaristas, como Don Herron, ignoram o conteúdo racial: em seu ensaio, “The Dark Barbarian”, Herron enfatiza os elementos fantásticos deste conto, afirmando,


Em 'Vermes da Terra' [Bran Mak Morn] destrói uma guarnição romana, mas apenas com a ajuda dos repugnantes vermes da terra - uma vitória que soa bastante vazia no rosto dos horrores desumanos que Mak Morn lançou sobre o mundo.


Em 2020, na sequência dos protestos raciais generalizados, insurreição populista e demagogia desumanizante, a relevância desta história perdura e aumenta para leitores atentos. Por quê? O jovem Howard sabia, talvez intuitivamente, que o trauma do conflito racial americano é uma fonte contaminada de violência, ódio e insanidade sempre regenerados, uma ferida não curada que continua a inflamar e desumanizar todos nós.


É surpreendente que Howard, em sua ficção, aparentemente se identifique com as causas subalternas de tribos indígenas, negros americanos, mulheres e minorias sexuais e de gênero, ao mesmo tempo em que implanta teorias de racismo da Supremacia Branca em sua correspondência.


Visto a partir do nosso momento contemporâneo, a vida dos pictos importa? Os romanos se tornam a polícia? E quem, e o quê, são esses desumanizados “Vermes da Terra” - essas monstruosidades odiosas fervilhando nas sombras? Se o picto crucificado pode ser contemporâneo de George Floyd, um homem de verdade, então Bran Mak Morn se torna um “guerreiro pela justiça social”; os vermes, a turba turbulenta que assalta a cidadela da democracia.


Link:


Jason Ray Carney é professor de Literatura Popular na Christopher Newport University. Ele é o autor do livro acadêmico, Weird Tales of Modernity (McFarland), e da antologia de fantasia, Rakefire and Other Stories (Pulp Hero Press). Recentemente ele editou “Savage Scrolls: Thrilling Tales of Sword and Sorcery” para a Pulp Hero Press e ele é também editor do “The Dark Man: Journal of Robert E. Howard e Pulp Studies”, bem como de “Whetstone: Amateur Magazine of Sword and Sorcery”.


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